Ame seu corpo: como eu fiz isso de verdade

por Raquel Abe

Nunca fui magérrima: na adolescência, lutava com meu corpo pelo desejo de caber numa calça 38, infeliz como só uma adolescente pode estar por não conseguir baixar do manequim 42. Meço 1,68m (invejosos dirão 1,67m) e meu auge da magreza foi aos 19 anos, quando pesava 65kg – depois de 6 meses me privando de comer 3 refeições por dia, numa relação completamente doentia comigo mesma.

Cresci numa casa na qual se fazia dieta uns 320 dias por ano; numa sociedade onde uma mulher manequim 42 já é chamada de gordinha; vendo anúncios nas revistas e televisão me ensinando que estar contente com meu corpo era errado – não importa qual corpo fosse – e que eu precisava emagrecer 5 kg com a dieta da sopa de alfafa nessa semana.

Em resumo, tudo na minha formação como mulher me levou a odiar meu corpo – e consequentemente a mim mesma – na idade adulta.

Desde os 15, 16 anos minha relação comigo variou entre descontar frustrações na comida ou na ausência dela. Era normal me olhar por minutos no espelho procurando gorduras em lugares errados, enfatizando pra mim mesma meus defeitos. Mas algo veio mudando nos últimos anos, algo que me dei conta há algum tempo e tenho digerido desde então para escrever esse texto.

Depois que conheci o feminismo (acho que um dos primeiros contatos que eu tive foi com o comercial da Dove), aprendi que eu não tinha que me odiar por sem quem sou, e que minha aparência não importa tanto quanto outras qualidades que eu tenho: ao menos não deveria importar, mas quem está errada nesta conta é a sociedade que me vê através do meu corpo, e não eu, por simplesmente ser assim. Mas houve um salto entre conhecer o feminismo e hoje: uma coisa é você saber que “deve se amar”. Outra, completamente diferente, muito mais difícil, é se amar de fato.

Como é possível, depois de passar toda uma vida se odiando e aprendendo todas as melhores maneiras de esconder seus piores defeitos (aquela barriga, a dobra das costas, a maldita gordurinha da axila que aparece na regata) e simplesmente me aceitar e começar a me amar?

Meus primeiros passos foram de volta para o espelho. Olhei aquelas mesmas gorduras (na verdade já 25-30 kg maiores) e meti na cabeça que eu precisava amá-las da mesma maneira que eu amava meus olhos ou meus lábios. SPOILER: Essa experiência não foi bem sucedida. Eu sempre voltava para os mesmos pensamentos: mas se perdesse barriga, ou se minha bunda fosse um pouco maior, a cintura mais fina ou esse maldito pneu esquisito que tenho nas costas não existisse?…

Eventualmente, nessa fase bem misturada, dividida entre uma cobrança por uma aparência e uma cobrança por amá-la, me deparei com um post antigo de algum blog ou revista online, sobre maridos que amavam as marcas das esposas. E, estando numa relação há já uns 4 anos, me perguntei: o corpo do meu namorado influencia no quanto/como eu o amo? A resposta, obviamente, foi não.

Por que, então, o meu corpo tem que me influenciar no quanto e como eu me amo? Se eu sou capaz de olhar outra pessoa e não enxergar as características dela como defeitos que precisam ser consertados, por que c*ralho faço isso comigo mesma? Que tipo de automutilação é essa?

Tentei começar a me ver como se eu fosse outra pessoa. Se eu fosse minha própria namorada, o que eu enxergaria em mim? E, depois de fazer esse exercício algumas vezes, fui conseguindo algumas respostas satisfatórias.

Eu sou carinhosa, sou inteligente, sou atenta e sou uma boa ouvinte (na maioria do tempo). Sou divertida, algumas vezes – ao menos rio sozinha – e tenho interesse em tantas coisas que não cabem em duas mãos. Depois de alguns meses fazendo isso com certa frequência, o exercício se tornou involuntário.

Pode soar bastante egocêntrico, eu sei, mas prometo que não é. Especialmente para quem está aprendendo a se amar. Foram algumas sessões de análise falando sobre isso, mas não chegam perto das sessões de análise que fiz comigo mesma nos pontos de ônibus, no banho, enquanto passava maquiagem para ir à uma festa. Aprender a me apaixonar por mim me fez ter um senso crítico muito mais afinado com a realidade.

Como qualquer paixão, tem seus dias bons e seus dias ruins, mas a vida está sendo muito mais fácil desde então. Muito mais leve, como a gente aprende que uma vida apaixonada deve ser. Permitir que a culpa da minha própria existência caísse dos meus ombros; Permitir a mim mesma não ser perfeita como a sociedade pede, mas ser autêntica e querer ser a melhor versão de mim mesma. E hoje, com meus 95kg e manequim 48, sou feliz comigo mesma como nunca fui antes. E recomendo a vocês, que lutam contra suas características, contra suas aparências, que tentem enxergá-las apenas como características e aparências, e não como grandes acusadoras e slogans para nossos defeitos.

Somos humanas, after all, e nós merecemos ser amadas, até por nós mesmas.

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Raquel Abe está num relacionamento complicado consigo mesma há 26 anos, curte hackear receitas e quando da na telha escreve umas besteiras pra tentar se encontrar.

* Ilustração: Negahamburguer

7 comentários

  1. Parabéns, Raquel! Bonito texto e linda atitude da sua parte. Sempre fui magro e a minha própria mãe vivia me dizendo isso, que eu era magricelo e precisava comer, para ficar forte igual aos filhos da suas amigas,e etc., e passei uma boa parte da minha infância-adolescência me odiando e me achando feio. Hoje tenho mais noção do mundo e vejo que não é bem assim que funciona a vida. Vivemos num mundo onde nos impõem regras e padrões, quando na verdade deveria ser prestigiado e valorizado as diferenças, pois é isso que nos torna humanos, e assim aprendemos a conhecer e a respeitar os outros.

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