Crônica: Parto

Nasceu! Rosa. Delicadeza. Sensibilidade. Feminilidade. Fraqueza. Submissão. Silenciamento. Heterossexualidade. Abuso. Maternidade Compulsória. Inferioridade. Objetificação. Culpabilização. Sobrecarrego.

Tomar a consciência do que é ser mulher foi um processo brutal e um divisor de águas da minha vida. Porque o saber-se mulher se dá apenas a partir da primeira tomada de consciência de uma opressão vivida – isso é uma marca que não sai mais. Esse momento geralmente é compartilhado, seja a partir da leitura de um texto-desabafo de outra mulher, seja por trocas de histórias e vivências de mulheres desconhecidas em algum espaço físico, seja numa simples conversa com alguma amiga; mas sempre vem do coletivo para o individual.

É agridoce descobrir que muitas das situações pelas quais passamos cotidianamente são as mesmas, ou muito similares às de outras pessoas… Então, você percebe que há um denominador comum entre todas essas pessoas, que elas não passam o mesmo que você – em maior ou menor medida – ao acaso, mas porque são mulheres.

Digo agridoce porque é doce descobrir que você não está sozinha. Esse sentimento traz consigo um forte poder de pegar uma dor, tomar posse dela ao nomeá-la e, assim, conseguir transformá-la em potência. É doce ter o acalento de finalmente entender o que é esse incômodo que você sente a vida toda e que isso não é algo inventado da sua cabeça – já que você foi ensinada a se autodeslegitimar sempre. Porém é demasiadamente amargo saber que você e outras mulheres estão juntas nessa condição, mas essa também é uma força propulsora pra transformações.

O mais amargo da minha vida, contudo, é que meu maior embate diário seja a minha mãe – que, para além de mãe, é uma mulher negra. Eu e ela estamos juntas em classe, mas cada vez mais afastadas pelo ódio. “Toda mulher é maternal” afirma o senso comum, que reforça que mulheres tenham que ser mães para se sentirem completas e realizadas em seu “instinto maternal”. E a partir do momento em que se tornam mães, esquece-se de que continuam sendo mulheres.

Minha mãe não queria ter filhos, muito menos uma filha lésbica. Ela tem muito ódio disso.

Minha mãe tem ódio não apenas do que eu sou pelo preconceito irracional dela, mas também por ter sido obrigada a me ter pra que eu findasse nisso que ela odeia. Como se fosse um peso extra. Tem ódio porque criou expectativas sobre o que queria de mim, como realização pessoal do que ela não pôde ter – e eu não me enquadro em boa parte dessas expectativas. Minha mãe é a mulher negra que largou os estudos aos 12 anos e veio do interior de Minas Gerais pra tentar a vida com a família em São Paulo. Isso, pra voltar a estudar e terminar o colégio aos 20 e ter que abdicar de um emprego do qual ela tinha tanto orgulho, aos 36, para ser mãe – por livre e espontânea pressão.

Ela só assumiu algumas poucas vezes que não queria ter sido mãe, que meu pai “pregou-lhe uma peça” – isso há muitos anos, antes mesmo de nossa relação se deteriorar. Mas o peso dessas palavras lhe foi tão grande e os julgamentos tão pesados que, a partir de então, ela se restringiu apenas a repetir, numa ocasião ou outra, uma única frase de um poema de Vinícius de Moraes, “Filhos? Melhor não tê-los!”… E ignorar ou responder com “Melhor não saber”, caso alguém completasse com a frase conseguinte do poema que diz “Mas se não os temos, como sabê-los?”.

Essas situações me ficaram marcadas. A sociedade não dá a real liberdade de escolha às mulheres e cobra que elas gostem do que foi escolhido para elas. Nesse contexto, sofrem mães, filhas e netas, em conjunto ou afastadas por essa mesma falta de escolha.

 

*A autora pediu anonimato.  E claro que a gente deu.

 

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